A Igreja Católica no Brasil tem a honra de contar, partir de hoje (15/10/17), com os seus genuínos mártires brasileiros. A Igreja Particular de Natal-RN tem essa alegria de apresentar para toda a catolicidade, confirmados pelo Santo Padre, o Papa Francisco, os Protomártires do Brasil. Eu tive a graça de participar da Beatificação, quando ainda era estudante de teologia, aqui em Roma, em 05/03/2000; e agora da Canonização. Esses dois acontecimentos me instigaram a pensar a atualidade teológica (Cf. arquidiocesedenatal.org.br/artigo-os-martires-de-cunhau-e-uruaçu-com-sua-atualidade.html) e pastoral deste testemunho, com alguns elementos que quero propor como chave de leitura e atualidade da mensagem deste martírio para as nossas práticas e desafios pastorais. Antes de tudo, quero ressaltar que os pontos a seguir são fruto das minhas cogitações pessoais e, por isso, ciente que podem e devem ser amadurecidos. Ei-os:
- A pessoa do Presbítero: nos dois episódios, está bem situada a pessoa do sacerdote. O lugar está bem ocupado. André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro estão testemunhando, junto com as comunidades, a centralidade do sagrado. A Eucaristia que é a presença real de Jesus Cristo na história, na vida da Igreja e de cada fiel. A vida pastoral da comunidade eclesial tem seu fundamento no Mistério Pascal de Jesus Cristo, sempre atualizado em cada celebração eucarística. A pessoa do presbítero precisa manter permanentemente essa sinfonia com a mística eucarística. Essa relação torna-se eclesial, porque é personalíssima. A Eucaristia como elemento fundante do único necessário. A exclamação Louvado seja o Santíssimo Sacramento é a configuração pessoal do que era a Eucaristia para aquelas comunidades; mas, sem dúvida, que continua a ser para a vida da Igreja, em todos os tempos. Onde não há a Eucaristia, é simplesmente narrativo falar de identidade eclesial. O presbítero deve situar-se nesse contexto teológico, para entender qual é a sua missão na comunidade e quais atitudes a serem tomadas na sua ação pastoral. Essa missão não é só sacramental, pois o ministério do anúncio da Palavra de Deus a acompanha; todavia, essa relação mistagógica é perene e fundante.
- O domingo, como Dies Domini: a comunidade cristã não pode perder a importância da centralidade do domingo, como Dia do Senhor. Para cada fiel, o domingo é dia de celebrar Páscoa de Jesus Cristo, a Sua ressurreição. Não é dia de mais uma obrigação. É momento do encontro com o Mistério da nossa fé. Por ser encontro, é necessário que aconteça com amor. Muitos cristãos, por causa de uma catequese superficial, que obscureceu a consciência interna do sentido deste dia para cada fiel, perderam o sentido e a beleza do domingo como tempo de glorificar a Deus e de participação na comunidade de fé. O secularismo, como fenômeno externo, está sufocando o que este dia deve ser para cada cristão. O indiferentismo, o materialismo, o racionalismo e outras convicções, provocam a liquidez da identidade cristã e estão sufocando o encantamento com a beleza da fé. Os Protomártires atualizam essa convicção axial do domingo como tempo primordial de reconhecimento de quem é o Senhor da nossa história.
- As famílias: “pelo Bom Pastor, deram o seu sangue, homens, mulheres, jovens e meninos”. Eis o que nos ensina o hino dos mártires. A comunidade cristã precisa redescobrir a beleza da espiritualidade familiar. A Igreja doméstica é a família. Ela é lugar de encontro com o amor, por excelência. Não pode existir o bem social, sem o cuidado com as famílias. Na sociedade pós-moderna existe a configuração de outros modelos de família; mas, não pode ser a própria sociedade a querer desconstruir o valor e o significado das mesmas. A valorização da confusão só confunde mais. O que existe é um desserviço ao bem das famílias. O testemunho dos Protomártires é um sinal de que é nas diferenças que compreendemos a maravilha da experiência familiar. Esta é sempre chamada a completar-se com o outro, que mostra que as diferenças que compõem uma antropologia integral é o que nos integra no mundo com os demais seres humanos. No acontecimento do martírio estavam presentes muitas famílias. O mesmo modelo de família que civilizou a sociedade ocidental. Contemplando este cenário, temos que abrir os corações para favorecer a proteção das famílias, antigas e novas.
- Protagonismo dos Leigos: A Igreja, principalmente depois do Concílio Vaticano II, reformulou a urgência da responsabilidade de todos os fiéis batizados na ação missionária pastoral. Esse protagonismo deve ser maduro. A fé e o sentimento de pertença eclesial devem nortear esse dinamismo. O que percebemos em muitos cenários eclesiais e eclesiásticos não condiz com as inovações almejadas pelo Concílio. O Papa Francisco tem mostrado e ensinado que o caminho não é do clericalismo, forçado por muitos ministros ordenados e alimentado por outros muitos fiéis leigos. A categoria povo de Deus ainda não foi recepcionada com profundidade e, por isso, politizada erroneamente por tantos que aprenderam a fazer parte da Igreja, sem ser Igreja, na comunhão e participação. Há subserviência e muitos confrontos infelizes na relação fiéis leigos e ministros ordenados. Essa ferida maltrata a Igreja, que é o corpo místico de Jesus Cristo.
- Ecumenismo: esse tema é conciliar. Entra amplamente na Igreja Católica, depois do Vaticano II. Contudo, suas primeiras impressões foram construídas pelas comunidades cristãs protestantes. No morticínio de Cunhau e Uruaçu está o que é sinal de escândalo para todos os que não professam a mesma fé cristã. A divisão dos cristãos é o mais grave contra testemunho da história do cristianismo. Estudiosos, a partir de outros paradigmas de conhecimento, podem analisar as questões políticas, econômicas, históricas e ideológicas. Para a Igreja esse fato envolve necessariamente uma questão de fé. Para quem não é cristão, que haja a honestidade de ver o que esse acontecimento significa para a Igreja e o que ela quer dizer ao mundo. Muitos passos foram dados no dialogo que precisa existir entre as comunidades cristãs. Mas, há tanto a ser construído. Recentemente, quantas formas irracionais de intolerância e desrespeito entre algumas comunidades cristãs. O ecumenismo é urgência de fé e de prospectivas humanistas, para o que o cristianismo pode realizar o bem do mundo e para a glória de Deus. O que aconteceu neste martírio não pode continuar a ser o mesmo erro cometido por tantos cristãos.
- Liberdade Religiosa: talvez seja um dos temas mais complexos dos tempos atuais. Universalmente declarado em 1948, mas que passou a ser uma preocupação constante das várias nações. A Igreja o aborda enfaticamente no Concílio Vaticano II. Extremismo religioso, atentados, guerras em nome de deus e outros elementos têm provocado discussões acirradas em várias partes do globo sobre a temática. O laicismo, que é a negação do dado religioso como fonte de valores sociais, tem sido incisivo e ideologicamente fortalecido. A laicidade defendida pelas religiões, que exige e espera o respeito ao que é próprio das suas identidades, e que sempre formaram a cultura ocidental, é chamado em causa, como princípio civilizatório e promotor da dignidade transcendente da pessoa humana, e é um ponto de equilíbrio para a convivência fraterna e solidária de todos os cidadãos, sejam eles religiosos, ou não.
Por fim, a preocupação é que a nossa concepção do que seja o martírio e sua relevância para a nossa ação missionária pastoral, não fique no secundário. Necessitamos de uma teologia do martírio para os tempos hodiernos. Não podemos estar só pensando no turismo religioso, mesmo que esse seja uma via importante. A questão é: como a Canonização dos Protomártires do Brasil vai ser fonte de motivação para que glorifiquemos a Deus e sejamos discípulos missionários de Jesus Cristo, neste tempo presente? Algo novo tem que acontecer. No conjunto da ação missionária pastoral da Igreja, o que podemos tirar de mensagem para que o testemunho destes homens e mulheres, que deram a vida por causa da sua fé, seja verdadeiramente semente de autênticos cristãos? Assim o seja!
Pe. Matias Soares